A luta inegociável de Preta Ferreira
Ativista, multiartista e líder comunitária, ela fala sobre autocuidado, sobre a sua absolvição, sobre a força ancestral e sobre a urgência de uma resistência coletiva contra o extremismo
Por Bia Sant’Anna
Preta Ferreira é uma das vozes mais potentes e plurais da cena artística brasileira contemporânea. Multiartista e publicitária, ela transita com maestria entre o teatro, a música, a literatura e o audiovisual, sempre com um olhar aguçado sobre as questões sociais, especialmente as que envolvem raça, género e justiça.
Filha da icónica líder do movimento de luta pela habitação, Carmen Silva, Preta cresceu na Ocupação 9 de Julho, no centro de São Paulo, onde a luta por habitação digna moldou a sua trajetória pessoal e política.
A sua história, aliás, é marcada pela resistência e pela luta antirracista, tornando-se um símbolo de força e criatividade para a comunidade preta e periférica.
Ela diz que por “ser uma inconformada com o que a sociedade nos proporciona”, é a própria falta de direitos que a encoraja. Afirma que é preciso formar novas lideranças “para que a resistência não morra e para que ninguém tenha de passar pelo que já passámos”.
Entre os seus principais trabalhos, destacam-se as atuações no teatro, como no aclamado espetáculo "Parem de Nos Matar!", que denuncia a violência policial contra corpos negros, e a sua participação no premiado filme "Era o Hotel Cambridge", de Eliane Caffé, que mistura ficção e documentário, e retrata a convivência entre ativistas do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) e refugiados num prédio abandonado. Além disso, é autora do livro "Minha Carne: Diário de Uma Prisão", obra autobiográfica que relata a sua experiência como vítima de uma prisão arbitrária e a sua batalha judicial.
Em Junho, Preta passou uma temporada de dois meses em Portugal com a peça “Sangue de Todas as Cores: A África em Nós” e atualmente se apresenta em todo o Brasil com o musical “Clara Nunes, a Tal Guerreira”.
Em julho deste ano, Preta foi finalmente absolvida pela Justiça, por ausência de provas, após ter passado mais de 100 dias presa injustamente em 2019, sob uma acusação que combateu sempre com firmeza.
Nesta conversa, ela conta como transforma a arte numa arma de denúncia e numa ponte de diálogo social, e fala da sua vivência enquanto mulher negra na linha da frente das lutas por moradia e direitos humanos. Entre memórias, críticas e reflexões, Preta deixa claro que a sua luta é coletiva e intergeracional — e que a resistência, tal como a arte, é inegociável.
Quais os assuntos mais urgentes para ti atualmente?
O meio ambiente é central. As alterações climáticas afetam desproporcionalmente pessoas negras e indígenas, que vivem em zonas vulneráveis. Porque ainda vivemos em favelas e nas valas, onde o saneamento básico não chega, as enchentes vão continuar a matar o nosso povo. O aquecimento global vai continuar a escravizar, e a matar, o nosso povo. Então, penso que a gente precisa falar muito sobre esses impactos.
E como é viver nesse sistema onde a maioria das leis e políticas públicas são feitas por homens e, em grande parte, por pessoas brancas?
Sou uma pessoa politicamente muito ativa, tanto como ativista, como através do meu trabalho, da minha escrita e da minha arte, e sempre lutei contra a ausência de políticas públicas. Quando não tenho os meus direitos constitucionais garantidos porque homens brancos ainda estão no poder, sinto-me como uma pessoa escravizada. Continuamos a lutar por cotas, a ser mal-atendidas nos hospitais e a viver sob uma necropolítica que nos mata, física e simbolicamente. Como mulher negra e ativista, sinto que preciso confrontar essas pessoas e mostrar à sociedade que a nossa realidade é outra.
Apesar de alguns avanços na representatividade, sentes mudanças reais na formulação das leis?
Sim, houve avanços, fruto das nossas lutas: do movimento negro, dos movimentos LGBTQIAP+, dos povos indígenas e, sobretudo, das mulheres negras. No Brasil, temos figuras como Erika Hilton, deputada trans mais votada, e agora também temos debates para criminalizar as fake news. Contudo, tal como a extrema-direita cresceu no mundo inteiro, também tivemos de avançar para combatê-la. Estive recentemente em Portugal e percebi que a situação política é semelhante. Hoje, no mundo inteiro, muitos representantes não estão lá pelo povo, mas pelo ego e pela ganância.
Imagino que já tenhas enfrentado estereótipos ligados ao género e à raça. Podes falar um pouco sobre isso?
Sim. Existe a expectativa de que a mulher negra seja sempre forte, bela, resistente e, muitas vezes, “raivosa”. Mas somos humanas e também precisamos de descanso e lazer. Esses estereótipos colocam-nos sob constante pressão.
E como cuidas da tua saúde mental, principalmente no contexto das redes sociais?
Faço terapia, que é algo que recomendo a todos. Também me cuido através da minha fé. Não preciso falar sobre tudo, coloco limites. Tenho muita responsabilidade com as minhas redes, pois sei o poder que elas têm. Procuro postar conteúdos que transformam, que ensinam, e não tenho medo de criticar o governo quando necessário. Afinal, sou cidadã, voto, tenho título de eleitor, participo da política, quero mudanças também. Bloqueio pessoas que me atacam e não preciso de sua convivência. Embora a sociedade tente embrutecer-me, não perdi a minha humanidade. Trato-me como um ser humano normal, cuido de mim e da minha família, e blindo-me dessa forma.
Sobre essa questão de ensinares nas tuas redes, incomoda-te a expectativa de ter de explicar constantemente questões raciais a pessoas brancas?
Às vezes incomoda. Não estou aqui para ser professora. Quem tem diploma, tem que estudar. As pessoas sabem o que fazem e devem procurar informação por si mesmas. Não estou aqui para ensinar. O nosso corpo não está aqui para servir. As ações falam mais do que as palavras. Não sou eu que devo ensinar uma pessoa a ser antirracista; ela tem que saber por conta própria. E é urgente, não é uma brincadeira, pois pessoas morrem.
Qual a importância do autocuidado?
O autocuidado é um ato revolucionário. Gosto de me sentir bem. Gosto de cuidar do meu corpo, do meu cabelo, de estar bem, de estar bonita. Momentos de lazer e auto amor são fundamentais para sobreviver à luta diária. Também vejo o autocuidado como uma forma de fortalecer o empreendedorismo feminino. A mulher que cuida do meu cabelo é uma mulher preta, a mulher que faz as minhas unhas é uma mulher preta sem teto.
Sim, também falas bastante de beleza nas tuas redes…
Falo. Porque sou uma mulher preta que se cuida e se cuida muito. Porque podem me chamar de tudo, menos de feia. Então, procuro fazer com que outras mulheres pretas como eu se vejam em mim, em tudo. Acho que quando nos amamos, as coisas fluem. Começamos a impor limites, a saber o que queremos e o que não queremos, e a definir o que é mesmo importante.
Como praticas esse autoamor?
Ele é importantíssimo para conseguirmos sobreviver. Fazer uma massagem, tirar um dia de descanso, beber um chá ou desfrutar de um copo de vinho, sair com as amigas... Acho que precisamos mesmo de nos cuidar e de ter estes momentos nossos, porque senão vai ser só "levar porrada". Precisamos estar bem, bem cuidadas e protegidas. Quem cuida de quem cuida? Cada um tem que cuidar de si, pois ninguém vai cuidar de mim. É por isso que eu me cuido muito.
E a tua espiritualidade?
A espiritualidade é o meu combustível diário. A minha fé é o meu guia. Sem os meus orixás, não sou ninguém. Sem a permissão deles, não faço nada. Sem antes falar com Deus, não faço nada. A fé mantém-me de pé. É graças à minha fé que estou viva, a trilhar o meu caminho e a transformar outras vidas. É uma fé coletiva, que realmente move montanhas.
Em Julho de 2025, a Justiça de São Paulo absolveu-te, assim como a outras lideranças do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), da acusação de extorsão de moradores da ocupação do Hotel Cambridge, no centro da capital. Como te sentes?
É simbólico que a minha liberdade tenha sido devolvida no dia 25 de Julho, Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Isso não foi coincidência — foi pacto ancestral. Estar livre hoje é como tirar um peso das costas. É honrar os gritos de “Preta Livre” que ecoaram pelo Brasil e pelo mundo. A minha liberdade também é por Marielle Franco. Ela antecedeu-me e fez-me ter voz. É pelos meus ancestrais. Pela minha mãe. Pelas minhas irmãs. Pelas pessoas pretas e pobres deste país. E por ter sentido, na pele, as dores da necropolítica. A todas as pessoas que caminharam comigo, a minha eterna gratidão.
O teu ativismo tem uma origem familiar, já que a tua mãe, Carmem Silva, é líder do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) e ativista respeitada pelo direito à moradia. Como é a vossa relação?
Sim, herdei essa luta da minha mãe. Ela é professora, mestra, urbanista lider do movimento social. É quase hereditário mesmo. A verdade é que eu também sou uma inconformada com o que a sociedade nos proporciona. Então, o que nos encoraja é a falta dos nossos direitos.
Nesse meio, aliás, há muitas mulheres líderes. Porquê?
No Brasil, as mulheres são chefes de família. Não foi uma escolha, foi uma imposição social. Precisamos formar novas lideranças para que a resistência não morra e para que ninguém tenha de passar pelo que já passámos. É preciso formação política em todos os sectores, o conhecimento precisa ser passado de geração em geração.
E como ele te foi passado? Podes contar como integras a arte nessa luta?
O meu ativismo começou através da arte. Sempre vi a arte como um capacitador que ia me levar para outros lugares. Foi a minha ferramenta de transformação social. Não consigo criar sem falar do povo negro e das suas lutas. A arte denuncia injustiças e também oferece alternativas, ajudando jovens a saírem da criminalidade. Organizei festas e eventos culturais dentro de ocupações para aproximar a sociedade dos movimentos sociais e quebrar preconceitos. A arte, a cultura, como disse o nosso ex-ministro Gilberto Gil, tem que ser servida como arroz e feijão. Porque é libertador. Hoje vemos muitas culturas a serem criminalizadas, como o samba foi um dia. Neste momento, a perseguição voltou ao funk aqui no Brasil, pois dizem que faz apologia ao crime. Mas o sertanejo também faz muitas outras apologias e não é um género criminalizado.
Em 2019, passaste mais de 100 dias presa. Como vês a situação das mulheres no sistema prisional brasileiro?
A situação nas prisões femininas é caótica e cruel, e isso é um problema global. Visito presídios no mundo inteiro e é assim também. Mais uma vez, são homens fazendo leis para mulheres. Além disso, elas são abandonadas pelos companheiros e muitas vezes estão presas por causa do patriarcado. E o sistema quer que as mulheres presas morram abandonadas. É um sistema falhado e desumano, que nega o direito à saúde digna. As mulheres precisam usar o miolo de pão ou pedaços de colchão como pensos higiénicos. Muitas estão a morrer de cancro. É preciso haver políticas públicas e uma transformação interna nas prisões. Pois em vez de ressocializar, acaba-se por formar mais criminosos.
A questão da ressocialização é especialmente importante, assim como o trabalho digno dentro das prisões…
Sim, tem que haver uma transformação dentro das prisões. É preciso ocupar essas mentes. Eles poderiam, por exemplo, colocar essas mulheres todas para cozinhar, para a gente ter comida fresca, mas ao invés disso vem uma marmita do interior do estado, às vezes até com pedaços de rato. Cada preso tem um custo para o Estado, um custo elevado. Então, há pessoas que estão a ganhar com isso. Existe uma máfia. Mas não podemos reclamar com ninguém.
Apesar dessa realidade, imagino que exista uma sororidade grande entre as mulheres presas, não?
As mulheres acabam por criar uma família lá dentro, cuidando umas das outras. As mulheres cuidam umas das outras para preservar a humanidade. Quando estive presa, organizei rodas de conversa e formações políticas com as mulheres. Acredito que essa sororidade é intrínseca às mulheres, que se unem para enfrentar a adversidade. No movimento de moradia, por exemplo, muitas mulheres são líderes porque precisam resolver problemas urgentes e lutar por direitos básicos como a habitação.
Nesse período, contaste com uma rede de apoio de pessoas influentes aqui fora também, como Angela Davis e o Papa Francisco. Qual foi a importância dessa rede?
Essencial. E fiquei muito surpresa, porque eu achei que ia passar despercebida, como a maioria das mulheres pretas, das pessoas pretas que são presas no Brasil. Essas pessoas me inspiraram e lutaram pela minha liberdade, que acabou por beneficiar outras mulheres negras também. Fui uma presa injustiçada mas, assim como eu, existem muitas outras, não é?Mostraram-me que eu não estava sozinha e que a união pode mexer com o sistema. Isso muda tudo.