O que sobra pra gente, quando a IA já cria tudo?
Sobra tudo que importa
Por Isis Freitas
Lembro quando eu precisava de horas (ou dias) pra escrever um bom parágrafo, sobretudo na época do mestrado, em que tive de escrever aquela tese longuíssima — e nada de ChatGPT. Hoje, vejo uma IA cuspir 18 possíveis variações em 3 segundos, em 48 idiomas. Algumas melhores que as minhas.
E se o que eu tenho de único já for replicável?
E se o algoritmo conseguir ser eu — antes que eu consiga?
Esse questionamento parece novo, mas é só a versão 2025 de um medo clássico: o de ser substituída. Já disseram que a fotografia enterraria a pintura. Que o cinema acabaria com o teatro. Que o digital mataria os livros.
A Inteligência Artificial não têm ideias
Agora o que está em jogo é a autoridade criativa, a ideia de que “ter uma ideia” ainda vale algo num mundo onde, com um bom prompt, pode-se gerar um poema em segundos.
Mas aqui vai o ponto: a IA não tem ideias. Ela simula novidade com base em estatística. Entrega a média. A combinação mais provável. Reorganiza padrões. Mas quem bagunça, quem inventa, quem arrisca é você.
Então, não: a IA não vai roubar sua ideia. Mas pode te convencer a parar de desenvolvê-la — parar no que funciona, no que parece, no que é suficiente.
Num mundo onde qualquer um pode gerar conteúdo, a única coisa que ninguém pode simular é a sua experiência. A IA pode calcular a próxima palavra mais provável, mas ela não sabe por que você escolheu essa. Não viveu o que você viveu. Não queria dizer o que você queria dizer. Criar nunca foi sobre produzir algo perfeito — e sim sobre dizer algo que só você poderia dizer.
Impecável esse prompt. Mas quem clicou?
A nova campanha da L’Oréal usou Firefly e Veo: imagem, cenário, luz. Mas a IA não é o ponto final. É o meio. Quem define a estética, a intenção, a mensagem — é gente. DJ Fred Again incorporou IA nos live sets pra gerar beats, loops, texturas. Mas quem costura tudo ao vivo, quem faz a transição suada de uma faixa pra outra — ainda é ele. É curadoria com código.
Marisa Maiô
E no Brasil, tem ela: Marisa Maiô. Apresentadora de um talk show absurdo que não existe, parceira publicitária de gigantes como OLX e Magalu. Sim, ela é uma IA. Sim, está sempre de maiô. Sim, é genial. Ela é caos gerado por prompt, meme, inteligência artificial e provavelmente uma dose controlada de LSD. E o mais maravilhoso? Tem gente por trás. Criando roteiro, estética, bordão.
O que separa a ferramenta da autoria?
A IA pode criar o cenário, aprender com padrões, até surpreender. Mas importa quem está usando. São as pessoas que decidem quando continuar, quando parar, o que manter — mesmo que o algoritmo não recomende. O que continua definindo a autoria é quem toma a decisão final.
Dahlia Dreszer
A fotógrafa Dahlia Dreszer foi perfeita ao dizer, em entrevista à Time:
“A IA é um supercharger, não uma substituta.
Eu gosto de deixar que ela me surpreenda,
mas continuo tomando todas as decisões.”
E é justamente isso que separa ferramenta de autoria. Mais do que parecer arte ou soar como alguém, a questão é o valor da presença — de saber que tem alguém ali. Escolhendo. Hesitando. Fazendo um corte não porque era o mais provável — mas porque era o mais necessário.
Mas e quando a autoria desaparece?
Quando não há mais um “quem”, só um “como”? A IA aprende com tudo o que já foi publicado, registrado, priorizado. Mas quem nunca teve acesso a uma editora, a uma vitrine, a uma plataforma? Quem não teve espaço pra errar, experimentar, falhar em público — simplesmente não virou dado. E o que não vira dado, não vira previsão. A IA não só entrega a média: ela automatiza o apagamento.
Quer saber se ainda é arte, criatividade? Eu olho pro que foi criado e pergunto: quem estava lá?
A IA escreve sem errar, sem cansar, sem se arrepender no dia seguinte. Mas só a gente consegue ter crise existencial numa terça-feira sem motivo. E é justamente isso que nos torna impossíveis de replicar.