Os mistérios psicadélicos do feminino
Uma jornada pelo livro de Chiara Baldini, que mostra como o renascimento psicadélico resgata o conhecimento ancestral das mulheres
Em "Mistérios Psicadélicos do Feminino", a antropóloga cultural Chiara Baldini conduz-nos por uma jornada entre o antigo e o contemporâneo, explorando as interseções entre o feminino, o misticismo e os estados alterados de consciência. O processo começou em 2014 e estendeu-se até à publicação do livro em 2019, sendo, ao mesmo tempo, uma pesquisa, uma reflexão e um convite — um lembrete de que a perspectiva feminina sempre esteve no centro da relação da humanidade com o mistério, ainda que muitas vezes relegada às margens da história.
Quando Chiara Baldini fala sobre a antologia, os seus olhos brilham com entusiasmo. “Co-criei com a Maria Papaspiro, e o David Luke deu-nos uma mão em alguns momentos. Acabou por ser uma edição a três”, conta, sorrindo, numa entrevista realizada para a Girls on Board.
O projeto nasceu da vontade de explorar o princípio feminino e os estados de consciência alterados de forma ampla e inclusiva, propondo um olhar plural sobre a relação entre o feminino e os estados alterados de consciência.
“Selecionámos um grupo bem diverso — e não só mulheres — para partilhar as suas experiências. Pesquisadores, curadores, artistas, advogados, historiadores… Queríamos perspectivas diferentes, caminhos de vida distintos, alguém que pudesse mostrar o feminino de múltiplas formas”, explica.
Baldini não aborda os psicadélicos apenas pela ótica da contracultura moderna. Ela reconstrói as raízes destes em mitos, rituais e tradições ligadas à deusa — dos Mistérios de Elêusis na Grécia antiga às práticas xamânicas em diferentes culturas.
A sua investigação mostra como o feminino foi não apenas participante, mas também guardião dessas experiências transformadoras.
O diferencial deste livro é a forma como Baldini devolve espaço ao feminino em discussões que frequentemente pendem para o masculino e para o clínico. A sua escrita traz calor, profundidade e senso de continuidade espiritual, revelando como o corpo, a intuição e a ligação com os ciclos da natureza sempre foram associados aos estados ampliados de consciência.
O Feminino Arquetípico e o Mistério
O livro abre espaço para refletir sobre o princípio feminino como arquétipo universal — que não pertence apenas às mulheres, mas simboliza a receptividade, a intuição, o mistério e o poder criador. Baldini conecta o culto às divindades femininas (como Perséfone, Deméter, etc, ligadas aos Mistérios de Elêusis) com experiências psicadélicas que permitem o contato com dimensões ocultas.
Dica para o leitor: pense nos arquétipos femininos, e percebe qual, ou quais, estão mais fortes em ti agora. Ou seja, se andas a cuidar mais de todos (Deméter), se estas mais numa de sedução e a procurar a magia do amor (Afrodite), se te sentes mais guerreira (Artemís ou Atena), ou outro que sintas a sua energia mais presente.
Xamanismo e Tradições Antigas
A obra revisita tradições onde o feminino esteve presente como guardião de rituais extáticos, como os ritos dionisíacos na Grécia antiga - onde as mulheres (as ménades) celebravam a natureza selvagem, o êxtase e a libertação dos padrões sociais -, ou as práticas xamânicas em diferentes culturas, nas quais as mulheres atuavam como curandeiras, parteiras e visionárias.
Reflexão: muitas destas práticas foram reprimidas pelo patriarcado, especialmente durante a caça às bruxas na Europa. O livro resgata essa memória como forma de reparação histórica.
Para Chiara, todo este processo foi uma jornada tão desafiadora como fascinante. “Foi um dos primeiros livros a falar especificamente sobre o feminino, mas também a questioná-lo. O feminino pode ser facilmente essencializado, reduzido a um conceito fixo. Nós queríamos abrir espaço para diferentes formas de expressão e reflexão sobre o próprio conceito de feminino”, admite.
O Corpo como Portal
Um dos pontos fortes de “Psychedelic Mysteries of the Feminine” é a exploração do corpo feminino como veículo de êxtase.
Experiências como o parto são comparadas a estados expandidos de consciência, em que dor e transcendência se misturam. Técnicas corporais, como dança em transe e respiração holotrópica, são apresentadas como caminhos não químicos para alcançar experiências semelhantes às psicadélicas.
Dica para o leitor: observar como o corpo responde a diferentes ritmos. Fazer uma meditação estática como a ativação da Kundalini. Parar e fazer respiraçõs profundas e sentir cada pequeno pedaço de si, sem se perder em pensamentos, identificando emoções e sentimentos.
Cura, Ayahuasca e Medicina Feminina
O livro dedica capítulos à ayahuasca e a outras plantas de poder, discutindo o papel das mulheres-medicina na atualidade. Destaca como a presença feminina em cerimónias traz um tom de acolhimento, segurança e integração emocional, que complementa abordagens mais técnicas, além de discutir o perigo da apropriação cultural e a necessidade de respeitar tradições indígenas.
Reflexão: leitores interessados em práticas com enteógenos podem refletir sobre a importância de escolher contextos éticos e de serem guiados por facilitadores com experiência e respeito cultural.
Feminismo psicadélico e ativismo
Um tema central é o feminismo psicadélico, que questiona: quem conta a história dos psicadélicos? Quem conduz a pesquisa?
O livro aponta que, historicamente, a narrativa psicadélica foi dominada por homens (como Aldous Huxley, Timothy Leary, Terence McKenna), enquanto vozes femininas ficaram invisíveis. A antologia traz ensaios de ativistas psicadélicas feministas, que defendem a valorização da diversidade de género, raça e cultura neste campo em expansão.
Dica de reflexão: ao consumir conteúdos sobre psicadélicos, procura autoras e pesquisadoras mulheres — como Ann Shulgin (PiHKAL, TiHKAL), Julie Holland (Moody Bitches), ou a própria Baldini.
O conceito de “Femtheogenic”
O livro introduz, também, a ideia de “femtheogenic”: uma sabedoria feminina revelada através da experiência psicadélica.
Este conceito valoriza qualidades, como interconexão, empatia, cuidado e circularidade, em contraste com modelos de poder hierárquicos. Pode ser aplicado não só em experiências individuais, mas também em práticas sociais — propondo uma cultura mais equilibrada, que una ciência e espiritualidade, razão e intuição.
Porquê ler este livro?
Para quem se interessa por espiritualidade, psicadélicos ou pensamento feminista, Baldini oferece uma perspectiva que é, ao mesmo tempo, ancestral e urgentemente atual.
É uma obra que não apenas analisa, mas também inspira — convidando-nos a olhar para dentro e a reconectar com tradições que valorizam equilíbrio, intuição e o sagrado.
O livro resgata tradições ancestrais e conecta-as com movimentos contemporâneos, como o renascimento psicadélico na ciência, ao mesmo tempo que amplia a narrativa sobre os psicadélicos para além do olhar masculino e clínico.
Por fim, a autora oferece ferramentas de reflexão para pensar o papel do feminino — tanto como força simbólica quanto como prática real de cura e transformação. A sua voz soa como uma guia luminosa, lembrando-nos de que o mistério, a beleza e a sabedoria florescem quando o feminino é honrado.
“Foi uma grande aventura e fico muito feliz que, mesmo anos depois, o livro continue a encontrar leitores”, conclui, lembrando que algumas ideias têm o poder de atravessar o tempo quando partilhadas com cuidado e paixão.
Sugestão complementar: ler este livro em conjunto com “Listening to Ayahuasca” (Rachel Harris) ou “Ecstasy: The Complete Guide” (Julie Holland) pode enriquecer a visão de como a experiência psicadélica se articula com a psicologia, a espiritualidade e o ativismo social.
Não deixe de ouvir a entrevista completa, pois está bem inspiradora!