Parto humanizado e o papel transformador da doula
Além do apoio físico e emocional, descobre como as doulas fortalecem a autonomia da mulher, reduzem intervenções e mudam a experiência do nascimento
Por Bia Sant’Anna
No centro do movimento pelo parto humanizado, que defende uma experiência de nascimento respeitosa, informada e empoderadora, existe uma figura cujo papel é o puro suporte: a doula. E a presença destas profissionais tem-se revelado, cada vez mais, um fator determinante para transformar a experiência do parto, reduzindo intervenções médicas e aumentando a satisfação das grávidas.
Rita Desterro, doula há 16 anos, explica que a sua própria jornada começou por uma busca pessoal: “Era professora de yoga e, quando decidi ser mãe, fiz formação em yoga para grávidas e pós-parto. A minha professora era doula e amiga do obstetra Michel Odent. Assim que soube o que ela fazia, percebi que queria fazer essa formação, até para viver um parto mais amoroso. Depois apaixonei-me pela função e descobri o que me move: apoiar mulheres.”
É fundamental perceber desde logo que a doula não é uma profissional de saúde. Não realiza exames, não faz diagnósticos, não prescreve medicamentos e não substitui a parteira ou o obstetra. A sua função é fornecer apoio contínuo, físico e emocional à grávida e ao(à) seu(sua) companheiro(a) ou família, antes, durante e após o parto.
Protagonismo do nascimento para a família
Para Rita, o trabalho de uma doula é “apoiar e informar a mulher, para que esta possa tomar decisões conscientes em conjunto com o(a) companheiro(a), sem impor nada. Todas as mulheres são diferentes e o nosso papel é respeitar e apoiar os seus desejos”. Apesar disso, reconhece que a maioria das mulheres que a procuram já deseja um parto mais natural ou vem de experiências anteriores que não foram positivas.
Ao empoderar os pais com informação e confiança, as doulas estão na vanguarda de um movimento silencioso, mas profundo, que devolve o protagonismo do nascimento a quem verdadeiramente lhe pertence: à família.
Aceitação nos hospitais e partos domiciliários
A relação com os profissionais de saúde varia bastante. Rita conta que já viveu experiências de colaboração efetiva, mas também já viveu situações de resistência: “Há parteiras que reconhecem a mais-valia de uma doula, mas também há quem nos veja como alguém que complica, só porque questionamos ou apoiamos a mulher a questionar as intervenções. De forma geral, as enfermeiras parteiras aceitam melhor o nosso trabalho do que muitos obstetras, que tendem a ter uma postura mais arrogante e menos aberta.”
No parto domiciliário, a integração é bastante diferente: “As parteiras veem-nos como parte da equipa e a relação é muito boa.” No entanto, desde a pandemia por COVID-19, passou a ser permitida apenas a presença de um acompanhante no trabalho de parto em muitos hospitais, o que limita a possibilidade de a grávida ter ao lado o(a) companheiro(a) e a doula.
Uma presença em todas as fases
A doula não é um luxo, mas sim um elemento valioso na equipa de nascimento. Ela preenche uma lacuna crucial no sistema de saúde, muitas vezes sobrecarregado e tecnocrático: a lacuna do tempo, da atenção personalizada e do apoio emocional ininterrupto.
O crescimento do número de doulas demonstra que, cada vez mais, o parto é visto não como um ato meramente médico, mas como um momento profundamente transformador para a mulher.
Quando começa o trabalho de uma doula?
Pré-conceção/antes da gravidez: o acompanhamento pode iniciar-se mesmo antes da gestação, com sessões de informação e planeamento que ajudem o casal ou a futura mãe a compreender melhor questões como a fertilidade, a preparação emocional, opções de local e equipa de parto.
Durante a gravidez: o apoio intensifica-se ao longo da gestação, através de encontros para definir o plano de parto, explorar técnicas de conforto, gerir expectativas e reconhecer sinais de início de trabalho de parto. É também um momento para envolver o/a acompanhante, compreender como lidar com o sistema de saúde e, se necessário, articular com cursos de preparação para o parto.
Trabalho de parto e parto: nesta fase, a doula está presente de forma contínua — seja no domicílio, no transporte ou já na maternidade — oferecendo técnicas de alívio não farmacológico (como respiração, posições, uso de água ou massagem), apoio emocional constante e facilitando a comunicação entre a família e a equipa clínica.
Pós-parto (período de puerpério): após o nascimento, a doula pode apoiar na amamentação, no descanso e recuperação da mãe, na organização da casa e na adaptação à nova rotina familiar. Também ajuda a identificar sinais de alerta que justifiquem procurar assistência médica.
Nos últimos anos, o apoio pós-parto tem ganhado maior visibilidade. Rita nota que “as mulheres começaram a falar muito mais sobre esta fase e a perceber que o apoio depois do parto pode ser até mais importante do que no próprio parto. Vivemos numa sociedade pouco comunitária e muitas mães enfrentam o pós-parto praticamente sozinhas.”
Pesquisas e estatísticas
Apesar de a profissão ser recente, a evidência científica que suporta o seu impacto é robusta. Um relatório da Cochrane Library, uma rede global de cientistas independentes, analisou 26 estudos com mais de 15.000 mulheres e concluiu que o suporte contínuo durante o parto (exatamente o que a doula oferece) está associado a:
Redução de 39% de cesarianas
Redução de 35% do uso de anestesia epidural
Redução de 10% da duração do trabalho de parto
Aumento de 31% da satisfação geral com a experiência de parto
Para Rita, o aspeto mais compensador é ver de perto essa transformação: “Acompanhar uma fase tão importante numa família, ver como os bebés crescem e se transformam, sentir que o nosso trabalho contribui para que a nascença seja amorosa e respeitada é incrível.
Como dizia Michel Odent, ‘para mudar o mundo, é preciso mudar a forma como nascemos’.”
Tendência no mercado global
Relatórios de análise de mercado apontam para um forte crescimento dos serviços de doula e de “coaching” para o parto durante a próxima década. A procura por um cuidado mais personalizado e centrado na mulher é apontada como o principal motor desta expansão. E o resultado são melhorias no acesso aos cuidados e na satisfação das mulheres com a experiência de parto.
Desafios e regulamentação
A ausência de regulamentação da profissão em Portugal é outro desafio. Para Rita, isso implica não ter direitos assegurados, o que dificulta o reconhecimento em ambientes hospitalares. Ainda assim, há um movimento crescente — a Associação Portuguesa de Doulas, que já conta com mais de 200 associadas — e uma forte rede de apoio entre as profissionais.
No Brasil, onde o movimento é mais consolidado, com mais de 15.000 doulas a atuarem no país, existe uma lei federal que garante a presença das doulas em qualquer parto na rede pública ou privada. Esse avanço serve de inspiração para o cenário português.
Mais autonomia às mulheres
A ascensão das doulas em Portugal representa uma mudança de paradigma profunda na forma como a sociedade encara o nascimento, colocando o bem-estar emocional, a autonomia e a voz da mulher no centro da experiência.
Ao oferecerem suporte contínuo, baseado em evidências e isento de qualquer intervenção clínica, estas profissionais não só preenchem uma lacuna vital no sistema de saúde como se tornam catalisadoras de uma experiência mais positiva, segura e empoderadora.