A revolução do gozo feminino
Um olhar psicanalítico sobre como o prazer da mulher transborda a lógica e desafia o controlo
Por Daniela Branco
Durante muito tempo, o desejo da mulher foi colocado entre parênteses. Podia até existir, desde que não incomodasse. Desde que não transbordasse. Desde que não colocasse nada em risco. O gozo feminino sempre colocou tudo em risco. Porque ele escapa. Ele não é domesticável. Não se explica, não se mede, não se controla. Nem os cientistas entendem!
O gozo feminino é suplemento, como diria Lacan (um psicanalista que surgiu depois de Freud). Ele acontece fora do regime fálico. Ele não precisa da lógica da performance. Nem da validação de ninguém.
Eu sei, eu sei que pode ser complexo demais, mas vou tentar explicar. Na teoria da psicanálise lacaniana, o regime fálico é o conjunto de significados que organiza o desejo a partir de um centro: o falo, entendido não como órgão, mas como símbolo de poder, norma e completude. É a régua que mede tudo. O que está dentro do sistema fálico pode ser representado, nomeado, organizado. O gozo masculino, por exemplo, tende a seguir uma lógica. Tem começo, meio e fim. É localizável, visível, previsível. O gozo feminino não. Ele não entra nesse enquadramento. Ele escapa à lógica da contagem. Não é regido por sequência. Não é, de todo; é muito mais.
Lacan afirma que há um gozo do corpo que está para além do falo, ou seja, deste poder que supostamente - e de forma até popular -, pode ser entendido como algo masculino, embora existam também mulheres fálicas. Mas para entendermos melhor, podemos fazer este enquadramento: falamos de um gozo que a mulher pode experimentar, mas que não pode expressar totalmente. Porque ele não se deixa capturar pela linguagem. Ele é um excesso de sentido, de presença, de corpo.
“O gozo feminino desorganiza. Desorganiza o controlo, desorganiza a lógica da produtividade, desorganiza a ideia de que o prazer precisa ser autorizado”
Esse gozo suplementar não é um extra no sentido de algo que se acumula. É algo que transborda os limites do que se entende como gozo normal. É o que não se encaixa. O que não pode ser controlado. Por isso, muitas vezes, assusta. Inclusive a própria mulher. Porque viver esse gozo exige sair da posição de objeto desejado e ocupar o lugar de sujeito do desejo.
De forma mais coloquial, poderia traduzir assim: parar de querer ser a escolhida para ser a que escolhe.
E isso muda tudo. Gozar, para a mulher, não é apenas sobre orgasmo. É sobre criar espaço para que o corpo exista com desejo. É quando ela se autoriza a sentir, a viver, a atravessar o mundo com intensidade, sem se desculpar por isso. Na clínica, escuto mulheres que passaram a vida inteira a servir, a mediar, a controlar. Mulheres que nunca se permitiram ao prazer. Nem o da cama. Nem o da dança. Nem o de estar sozinha, inteira, sem prestar contas.
Vera Iaconelli diz que o desejo da mulher foi calado, colonizado, domesticado. Eu acrescentaria que ele também passou a ser vigiado. Por séculos, fomos ensinadas a desconfiar do nosso prazer. Como se o nosso corpo só pudesse existir ao serviço do outro e não como território de criação e menos ainda, de auto prazer.
Uma mulher que goza do próprio desejo não precisa de manual. Ela não obedece, ela cria. Talvez seja isso que assusta mais. O facto de que, quando a mulher goza, ela deixa de servir. E começa, finalmente, a viver.