Começar algo novo com o corpo que se tem
Ensinaram-nos que o nosso corpo devia ser moldado, aprovado, elogiado — mas aventurar-se só exige um corpo vivo e um desejo acordado
Por Daniela Branco
Quantas vezes já deixaste de experimentar algo novo por achares que já não tens idade para isso? Aprender a surfar, dançar sem medo de ser julgada — nem que seja sozinha em frente ao espelho. Vestir aquele fato de banho mais cavado, inscrever-te numa aula de yoga, cantar no karaoke sem esperar que alguém peça bis.
Há mulheres a aprender a escalar aos 50. Eu própria fui aprender a surfar depois dos 40. E, com 44, ainda não tenho coragem de dizer que surfo. Eu tento. Há mulheres a redescobrir o prazer de andar de skate aos 42. Há quem, depois de um divórcio aos 60, esteja a dar o primeiro passo em direcção a si mesma — com uns ténis nos pés e o coração na mão.
Começar algo novo não exige um corpo ideal.
Exige um corpo vivo. E um desejo acordado.
Desde cedo nos ensinaram que o corpo devia agradar, ser moldado ao gosto do outro, validado por olhares alheios. Um corpo para servir. Com o tempo, essa exigência muda de cara, mas continua lá.
Agora vem disfarçada de produtividade, disciplina, juventude eterna. Como se viver por inteiro tivesse data de validade. E, devagarinho, vamos desaprendendo a ouvir o corpo. E com ele, o desejo.
Na psicanálise, especialmente com Winnicott, aprendemos que o gesto espontâneo é sinal de vida verdadeira. É quando o ser, em segurança, se pode expressar sem medo. Esse gesto não procura aplausos — nasce de dentro. Por isso, começar algo novo aos 40, ou aos 70, não é capricho. É reencontro. É reexistência.
Quando uma mulher sobe numa prancha pela primeira vez, não está só a enfrentar o mar. Está a dizer ao mundo: estou aqui, inteira — mesmo com medo. Quando dança sem saber os passos, ela cria um novo ritmo dentro de si. Quando se permite errar, cair, levantar e tentar outra vez, está a permitir que o corpo volte a ser livre.
O movimento é linguagem. O corpo fala. E às vezes, grita por espaço, por pausa, por recomeço.
O corpo é a primeira casa. E também pode ser o lugar onde voltamos a nós.
Lacan dizia que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. Antes mesmo de sabermos falar, já somos atravessadas por palavras, expectativas, ideias do que “devemos” ser, fazer, sentir. E é nesse emaranhado que o nosso desejo vai nascendo.
Mas quando o corpo se mexe com liberdade, rompe com parte dessa herança. Encontra uma nova forma de dizer. Um novo modo de estar no mundo.
Talvez seja por isso que recomeçar através do corpo seja um acto tão corajoso.
Porque, num tempo em que tudo parece uma performance, mover-se com verdade pode ser o gesto mais íntimo de liberdade
A revolução começa no corpo que ousa. Que se move com medo, mesmo assim.
Que não espera autorização para existir com inteireza. É no corpo que nasce o renascimento da alma.
De dentro para fora, em ondas, em quedas, em passos completos.
Qual é o gesto que o teu corpo está a pedir hoje?