De MCs a CEOs: como elas estão a redefinir a cultura hip hop

Mulheres mostram que o estilo vai muito além do entretenimento, sendo também um negócio, uma ferramenta de transformação e um veículo de liderança

Quando o hip hop nasceu nos bairros de Nova Iorque, nos anos 1970, muitos o viam apenas como um movimento artístico ou uma forma de expressão juvenil. Mas ao longo destas décadas, transformou-se numa das maiores indústrias culturais globais — influenciando música, moda, dança, design, ativismo social e, até, negócios bilionários.


Nesse universo, as mulheres sempre estiveram presentes — mesmo que, muitas vezes, invisibilizadas. Hoje, de MCs e b-girls a empresárias e produtoras que comandam marcas e carreiras, o hip hop tornou-se também um palco de empoderamento feminino e inovação empresarial.

Mais do que rimas: o hip hop como espaço de carreira

O hip hop não se resume apenas a MCs e DJs. Ele é um ecossistema criativo que abre portas para diferentes trajetórias profissionais: produtoras musicais que criam novos sons; designers e estilistas que transformam a estética urbana em moda global; empresárias e gestoras que estruturam festivais, editoras discográficas e coletivos; e ativistas que usam a cultura hip hop para lutar por inclusão e justiça social.

Embora seja um estilo frequentemente marcado por narrativas masculinas, as mulheres têm vindo a conquistar terreno no hip hop - e com uma grande visão estratégica. A luta contra o machismo estrutural e a falta de representatividade ainda é real, mas o movimento feminino dentro da cultura prova que é possível quebrar barreiras e criar novos caminhos.

Ao assumir esses espaços, as mulheres mostram que o hip hop vai muito além do entretenimento: ele é também um negócio, uma ferramenta de transformação e um veículo de liderança.

Vozes que desafiaram o sistema

Missy Elliott – EUA

Missy Elliott é sinónimo de inovação no hip hop. Produtora, rapper, cantora e ícone visual, ela revolucionou o estúdio ao assumir o controlo criativo das próprias músicas e videoclipes, algo raro para mulheres nos anos 1990. Com videoclipes futuristas e uma abordagem de branding única, Missy abriu caminho para artistas que querem unir música, moda e tecnologia, mostrando que o hip hop é também um espaço de experimentação e liderança feminina.

Queen Latifah – EUA

Nos Estados Unidos, Queen Latifah foi pioneira ao mostrar que o hip hop podia ser uma porta de entrada para uma carreira multifacetada. Estreou-se no rap no final dos anos 1980, trazendo rimas com mensagens de autoestima e igualdade, quando o cenário era dominado por homens. De lá, expandiu-se para o cinema, televisão e negócios, tornando-se uma atriz premiada, apresentadora e produtora. Latifah provou que a cultura hip hop é um trampolim para o empreendedorismo e para a construção de um império criativo.

Negra Li – Brasil

Negra Li é um dos nomes que mostram como o hip hop pode impulsionar uma carreira diversificada. Cantora, compositora e atriz, começou nos anos 1990 no grupo de rap RZO e construiu um percurso que mistura música, moda e representação. Negra Li quebrou barreiras de género e raça no rap nacional, tornando-se uma referência para novas gerações e usando a própria trajetória para falar de empoderamento feminino, autoestima e identidade negra.

Flora Matos – Brasil

Rapper, compositora e produtora, Flora Matos é um exemplo de como o hip hop pode expandir-se além do palco, unindo música, cultura e inovação. Com um estilo que mistura rap, soul e música eletrónica, Flora cria narrativas que refletem experiências urbanas e questões sociais, ao mesmo tempo em que participa ativamente em projetos culturais e de produção musical. A sua trajetória mostra que o hip hop é também um espaço para mulheres, inspirando novas gerações de artistas e produtoras no Brasil e além-fronteiras.

Capicua – Portugal

Em Portugal, Capicua é um dos nomes mais influentes quando se fala de hip hop consciente. Com letras afiadas e poéticas, a rapper do Porto transformou o rap em ferramenta de questionamento social, abordando feminismo, desigualdade e política cultural. Além da carreira musical, Capicua escreve livros, participa em projetos de "spoken word" e é presença constante em debates sobre o papel das mulheres na música, mostrando que a voz feminina pode ser tão poderosa nos microfones quanto nas mesas de decisão.

Mynda Guevara – Portugal

A artista luso-cabo-verdiana Mynda Guevara traz para o rap português uma estética própria, que mistura crioulo e português e aborda a realidade da diáspora africana. Além da performance energética, ela atua como produtora de alguns dos seus trabalhos, controlando a narrativa e o som que deseja apresentar. Mynda representa uma nova geração que vê o hip hop não só como palco, mas também como plataforma de empreendedorismo e expressão identitária.

Mulheres nos bastidores e nos negócios

O hip hop não é apenas sobre quem segura o microfone ou dança no palco. Nos bastidores, mulheres visionárias transformam a cultura em estratégia, empresa e legado.

Sylvia Rhone, executiva norte-americana, foi a primeira mulher a chefiar uma grande editora, liderando selos importantes, como Epic Records e Motown. Ao longo de décadas, ajudou a lançar carreiras de artistas que definiram gerações, abrindo caminho para que mais mulheres ocupassem cargos de direção na indústria fonográfica.

Ethiopia Habtemariam, filha de imigrantes etíopes e apaixonada pela música negra desde cedo em Atlanta, tornou-se também uma das executivas mais poderosas do hip hop, rap e R&B, iniciando a sua carreira na Universal Records. Hoje, como CEO da lendária Motown Records, continua a abrir caminhos e a dar voz a artistas negros em todo o mundo.

Da gestão de artistas à curadoria de carreiras, a canadiana Sophia Chang ficou conhecida como a “madrinha do hip hop”. Chang geriu nomes lendários, como Wu-Tang Clan e Q-Tip, provando que a liderança feminina pode moldar movimentos culturais e manter a autenticidade do hip hop enquanto negócio global.

Mas a influência feminina vai muito além do mercado musical. Estilistas e designers também transformaram o hip hop em moda e empreendedorismo. Muito antes de o streetwear ser tendência global, April Walker e Misa Hylton já misturavam luxo e estética de rua, criando o visual que definiu o hip hop dos anos 1990. Walker, à frente da Walker Wear, vestiu lendas como Tupac e Notorious B.I.G., mostrando que uma mulher podia liderar uma marca num universo dominado por homens. Hylton, por sua vez, revolucionou a imagem de artistas como Mary J. Blige e Lil’ Kim, unindo alta-costura a peças urbanas, e lançando as bases para o que hoje chamamos de “hip hop fashion”.

Essa herança abriu portas para uma nova geração de criativas. Melody Ehsani, em Los Angeles, transformou a sua visão feminista em coleções de joias e streetwear que dialogam com temas de igualdade e identidade, assinando colaborações com gigantes como a Nike e a Reebok.

Em Inglaterra, Martine Rose, faz do menswear um espaço de experimentação, que mistura a cultura club e do hip hop, influenciando marcas de luxo e jovens designers. Em Portugal, nomes como Inês Morais começam a ganhar destaque com propostas de streetwear pensado com consciência da cadeia de produção, mostrando que a estética urbana também pode ser ética e inovadora.

No Brasil, a presença feminina também brilha nos bastidores. Eliane Dias, advogada e empresária, é a mente estratégica por trás do sucesso dos Racionais MC’s, transformando o grupo em referência internacional de rap e gestão independente. Na moda urbana, nomes como Lyziane Mattos, da marca Cacete Company, une estética de rua, identidade afro-brasileira e empreendedorismo, provando que o hip hop brasileiro é igualmente um espaço de liderança e inovação feminina.

Do palco ao boardroom: hip hop como mindset de negócios

A mesma criatividade que move um freestyle pode inspirar a criação de um produto ou a gestão de um projeto. Esse “mindset hip hop” - que ensina que é possível começar do zero, criar impacto a partir da autenticidade e transformar resistência em potência - tem guiado mulheres que hoje atuam como CEOs, líderes de coletivos criativos e fundadoras de startups, mostrando que a cultura pode ser traduzida em estratégia de mercado, branding e impacto social.

Hoje, o hip hop é feminino, plural e poderoso. E as mulheres que atuam ao microfone, na gestão, na moda ou no ativismo, mostram que cada beat também pode ser um passo em direção à liberdade, à transformação social, ao empoderamento e à liderança.

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