Oceano como templo

Entre o medo e a entrega, Violeta Lapa encontrou no mar o seu espaço sagrado — e agora sonha criar nos Açores o primeiro centro de arte aquática

Por Bia Sant’Anna

Há quem procure o silêncio de uma igreja ou a serenidade de um templo para se conectar com o sagrado. Mas, para muitas mulheres, o oceano é o verdadeiro altar. As ondas, o sal e o infinito azul tornam-se espaço de cura, oração e reconexão espiritual.

Violeta Lapa é uma dessas mulheres. Em entrevista a Girls on Board, ela conta que durante a infância quase perdeu a vida em dois acidentes no mar e passou mais de duas décadas afastada da água. “Sempre tive muito medo de ondas, pois quando era criança quase morri afogada. Fiquei com um trauma e muito medo da água”, recorda. Mas, mesmo nesse tempo de afastamento, o chamamento nunca deixou de existir. “Continuava a sonhar que voava debaixo de água. Desde os 19 anos tinha o sonho de dançar no mar profundo e de um dia dançar com baleias.”


Esse sonho ganhou forma em 2016, quando decidiu enfrentar o medo: viajou sozinha até à Tailândia para aprender a nadar e participar num encontro de dança aquática. A experiência foi transformadora e deu origem ao projeto Oceans and Flow que hoje é uma referência internacional na cultura do movimento aquático. “O meu maior medo da água virou paixão e missão. Nunca imaginei que por trás do meu maior medo eu iria encontrar tudo aquilo que sempre desejei: ter uma vida com propósito e significado.”

Agora, a criadora prepara um novo mergulho: Violeta já está em contacto com investidores para fundar, na ilha do Faial, o Mãe d’Água, o primeiro centro de arte aquática dos Açores. Um espaço que pretende unir espiritualidade, criação artística e consciência ambiental, reforçando ainda mais a sua visão do oceano como um templo líquido.

Em várias culturas, a água sempre foi símbolo de purificação e renascimento. Para Violeta, é também a expressão máxima do sagrado na natureza. “O mar, com a sua imensidão, ritmo e mistério, oferece-nos silêncio, purificação e renovação, como qualquer templo”, afirma. É este olhar que ela partilha com as comunidades que cria e conduz, em retiros, viagens e sessões individuais. “No mar é onde me sinto em casa.”

Lê abaixo a entrevista completa com Violeta e fica a conhecer dicas para fazeres o teu próprio ritual e renasceres na água.

Como nasceu a tua ligação com o mar e quando percebeste que este poderia ser um espaço sagrado na tua vida?
Ao longo de 25 anos vivi afastada do mar depois de ter tido dois acidentes e de quase ter morrido afogada. Até aos 35 anos, não sabia nadar mas enchi-me de coragem e viajei sozinha até à Tailândia, onde participei num encontro de dança aquática. Foi uma experiência que mudou o rumo da minha vida. Depois de seis meses realizei a primeira edição do Oceans and Flow, na ilha de São Miguel, nos Açores. Desde então, nunca mais parei: descobri o mergulho livre e a terapia aquática. Nunca imaginei que por trás do meu maior medo encontraria tudo aquilo que sempre desejei: ter uma vida com propósito e significado.

Que experiências pessoais mais marcaram o teu caminho até criares a Oceans and Flow?
Entre 2009 e 2015, passei por duas organizações — a Terra dos Sonhos e a Zoom Talentos — que expandiram a minha capacidade de sonhar e realizar sonhos. Fui coordenadora nacional de 120 equipas de sonhos e produtora; realizámos 350 sonhos de crianças e jovens em menos de dois anos. Tenho seguido a água e para onde ela me leva: fiz 68 viagens de pesquisa aquática nesses nove anos e conectei-me com pessoas que trabalham com a água de várias formas — atletas, cientistas, terapeutas, herbalistas, mergulhadores, anciãos de uma tribo aquática, artistas, bailarinos e sea coaches. Fui aprendendo com todos eles sobre a conexão que podemos desenvolver com a água e como partilhar esses conhecimentos e práticas ancestrais.

Para ti, o que significa dizer que “o oceano é um templo líquido”?
É reconhecer que o sagrado está na própria natureza viva. O mar, com a sua imensidão, ritmo e mistério, oferece-nos silêncio, purificação e renovação, como qualquer templo. Estar diante dele é entrar num espaço de oração e de conexão profunda com o divino, onde sentimos amor e pertencimento, e aprendemos humildade, entrega e união com algo maior do que nós.

Como é que a água pode ajudar na cura emocional e no reencontro com o corpo?
A água acolhe, liberta e renova. Ao nível físico, traz leveza, alivia tensões e acalma o sistema nervoso. No plano emocional, é como um “útero líquido” que nos ampara, ajudando a soltar mágoas e a recomeçar, trazendo leveza e coragem. No plano simbólico, recorda-nos a fluidez da vida e a passagem das emoções, como ondas que vêm e vão. Seja num banho consciente, num mergulho no mar ou apenas ao ouvir o som da água, ela ensina-nos a soltar o peso e a regressar à nossa própria presença.

Que mudanças mais observas nas mulheres depois de um mergulho ou ritual conduzido por ti?
Tenho presenciado muitas histórias de transformação. A água expande a qualidade da presença, dos sentidos e da contemplação da beleza do mundo aquático. Para muitas pessoas, é também um despertar ecológico. A água comunica connosco e faz emergir o nosso potencial e dons.

Como vês o papel da ligação à natureza e ao mar no futuro do bem-estar e da espiritualidade?
A ciência já mostra os benefícios físicos e emocionais dos ambientes aquáticos, e acredito que as práticas espirituais do futuro serão cada vez mais ecológicas e relacionais, menos centradas em dogmas e mais na experiência direta com o sagrado da Terra. Nesse sentido, o mar terá um papel de mestre e aliado, inspirando rituais de bem-estar e comunidades de cuidado baseadas no respeito, na proteção e na regeneração da vida.

Podes partilhar alguma história marcante?
Muitas participantes tomaram decisões importantes nas suas vidas depois de experiências aquáticas: criaram novas carreiras e projetos, deram passos decisivos rumo aos seus sonhos e, em alguns casos, vivenciaram processos de cura física e emocional. Uma delas, que participou no 1.º Encontro Filhas da Água em 2019, em Fernando de Noronha, descobriu que podia dançar e cantar debaixo de água e hoje é conhecida como “Marina do Mar”.

Como criar o teu próprio ritual e “renascer” na água
Tudo começa por uma atitude de respeito e escuta. “Antes de pensares em rituais, dedica algum tempo apenas a observar, ouvir e sentir o oceano. Deixa que a tua respiração se alinhe com as ondas”, explica Violeta. É dessa presença silenciosa que nascem os gestos mais simples e transformadores.

Eis algumas propostas que emergem da tua experiência:

  • Observar e alinhar-se com o mar: parar, contemplar os pormenores, ouvir o ritmo das ondas e deixar que a respiração acompanhe esse movimento natural.

  • Oferecer símbolos à água: uma pedra, uma concha ou palavras escritas na areia para serem levadas pela maré, como exercício de soltar e recomeçar.

  • Mergulhar em silêncio: entrar na água como quem entra num templo, deixando que o corpo seja amparado pelo “útero líquido” e permitindo que as emoções venham e vão como ondas.

  • Respirar e flutuar: sentir a leveza, aliviar tensões e permitir que a água acalme o sistema nervoso.

  • Integrar ciclos naturais: respeitar as marés, observar as fases da lua e perceber como o próprio corpo também segue ritmos cíclicos.

  • Praticar gratidão em movimento: caminhar até ao mar com uma intenção clara — seja paz, renovação ou inspiração — e deixar que essa intenção guie cada gesto.

  • Contemplar em comunidade: partilhar mergulhos, trilhos aquáticos ou danças no oceano, criando momentos de introspeção e ligação com outros.

  • Escutar os sinais da água: estar aberto a insights, imagens ou emoções que surgem durante o contacto, como mensagens que emergem do mar para a vida quotidiana.

“O mais importante é que a tua prática nasça do coração e possa evoluir, tal como o mar: viva, fluida e em constante transformação”, resume.


Conhece outras mulheres que também ensinam como te reconectares contigo mesma no Oceano:

  • The Salt Sisterhood (@thesaltsisterhood) – Um coletivo ativo no Reino Unido e também em Portugal, que promove retiros que combinam yoga, meditação e natação no mar como práticas de reconexão feminina e cura.

  • Spiritual Surf (@spiritualsurf) - Idealizado por Dalila Foti no litoral norte de São Paulo - Brasil, este projeto une surf, yoga e thetahealing como ritual de fortalecimento, cura emocional e empoderamento feminino, percorrendo vários países, entre eles, Portugal.

  • The Water Journey (@the_waterjourney) – Um retiro íntimo e feminino, que propõe imersão matinal no mar, respiração consciente, caminhadas junto à água e conexão profunda com o oceano como prática espiritual, realizado na Galiza - Espanha.

    O oceano pode ser templo, altar, refúgio e mestre. Cada onda traz uma lição: nada é permanente, tudo flui, tudo se renova. E é nesse movimento eterno que tantas mulheres encontram cura, espiritualidade e força para seguir.

*as fotos da matéria foram feitas nos projetos mencionados pela Violeta com reprodução de Peregrinus Studio, Suahuatica, Gustavo Neves e Maira Kellermman.

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