A cultura do cansaço: como normalizámos o facto de vivermos exaustos
Entre o “posso tudo” e o “não aguento mais”, o esgotamento deixou de ser um sinal de excesso e passou a ser identidade
Por Isis Freitas
Está toda a gente cansada. É o novo sotaque da época.
A conversa começa com “estou exausta” e acaba com “precisava de férias”.
Normalizámos o colapso, como se fosse um estado civil.
Já não caçamos mamutes, não construímos abrigos com pedras, nem precisamos de fugir de ursos para sobreviver. O susto de hoje é abrir o telemóvel e ver 47 notificações.
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano contemporâneo, chama-lhe a “sociedade do desempenho”.
Saímos do “tenho de” e chegámos ao “posso tudo”.
Mas o “posso tudo” transformou-se no novo “tenho de”. Ou seja, posso ser produtiva, saudável, criativa, zen, bem informada e, ainda, publicar com bom humor — então, a questão que se coloca é: “porque é que não estou a conseguir?”
O cansaço é o bug entre o que podemos ser e o que somos de facto.
De alguma forma, o cansaço virou estatuto. Estar sempre no limite dá credibilidade.
“Se estou esgotada, é porque estou a fazer algo certo.”
Medimos o esforço pelo nível de exaustão — como se “estar de rastos” provasse que ainda estamos no jogo.
Desconfia-se de quem parece descansado.
Como se o descanso fosse um privilégio, ou, pior, desinteresse.
O descanso virou um modo do telemóvel.
Não fazemos pausas, apenas mudamos de separador.
Até o relaxamento virou objetivo e meta — “olha, bati o meu recorde de calma na app da ansiedade!”.
No final, talvez o problema não seja estar cansada, mas o quanto transformámos o cansaço em identidade. Ficou mais fácil dizer que estamos exaustas do que admitir que já não sabemos o que é descansar.